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domingo, 5 de dezembro de 2010

"A Pipa de Amontillado" de Edgar Allan Poe

As mil injúrias de Fortunato, eu suportei o melhor que pude, mas quando ele chegou ao insulto, então jurei vingança. Os senhores, que tão bem sabem a natureza da minha alma, não vão supor, contudo, que eu faria uma ameaça declarada. No devido tempo seria vingado, esse era um ponto inevitavelmente assente; mas a própria inevitabilidade da decisão excluía a ideia de risco. Devia não só punilo, mas punilo impunemente. Uma maldade não traz nenhum benefício se uma represália atinge o beneficiado. Do mesmo modo, também não há benefício se o vingador é incapaz de se mostrar ao outro como o autor da maldade.
Deve ficar bem claro que, nem por palavras nem por actos, eu dera motivo a Fortunato para duvidar da minha boa vontade. Continuei, como de costume, a sorrir à sua frente, e ele não percebeu que agora o meu sorriso vinha de pensar na sua imolação. Tinha um ponto fraco este tal Fortunato, embora noutras coisas fosse um homem digno de respeito e até de receio. Ele orgulhavase dos seus conhecimentos sobre vinhos. Poucos italianos têm alma de especialistas. A maioria mostrase  entusiasmada, conforme o momento e a oportunidade, para enganar os ricaços[1] ingleses e austríacos[2]. Tanto em pintura como em gemologia, Fortunato, tal como os seus compatriotas, era uma fraude, mas no que tocava a vinhos velhos era genuíno.
Neste campo não éramos materialmente diferentes; eu próprio também sou um especialista nas safras italianas e compro grandes quantidades sempre que posso.
Escurecia, numa dessas noites de suprema loucura da estação carnavalesca, quando encontrei o meu amigo. Aproximouse de mim com demasiada cordialidade, pois já tinha bebido bastante. Estava vestido de bufão. Tinha um fato bem justo às riscas pretas e brancas e, na cabeça, um barrete cónico com sinos. Fiquei tão satisfeito de o ver que pensei que nunca ia parar de lhe apertar a mão. Disselhe:
– Meu caro Fortunato, que sorte vêlo! Está com um óptimo aspecto! Mas imagine que recebi hoje uma pipa de uma bebida que pretende passar por amontillado, e tenho as minhas dúvidas.
– Como? – disse ele. – Amontillado? Uma pipa? Impossível! Ainda por cima no meio do Carnaval!
– Tenho as minhas dúvidas – respondi – e fui suficientemente parvo para pagar o preço de verdadeiro amontillado sem o consultar antes sobre o assunto. Não consegui encontrálo e estava com medo de perder um bom negócio.
Amontillado!
– Tenho as minhas dúvidas.
Amontillado!
– E preciso de as tirar.
Amontillado!
– Como está ocupado, estou a ir ter com o Luchresi. Se alguém tem um bom sentido de avaliação, é ele. Ele me dirá…
– Luchresi não sabe distinguir amontillado de sherry.
– E no entanto alguns idiotas acreditam que a capacidade
de prova dele é tão boa como a sua.
– Vamos lá.
– Aonde?
– À sua adega.
– Não, meu amigo; não vou abusar da sua bondade. Estou a perceber que já está comprometido. Luchresi…
– Não tenho nenhum compromisso; vamos.
– Não, meu amigo. Não é tanto o compromisso, mas a forte constipação que já vi que o aflige. A adega é terrivelmente húmida. As paredes estão cheias de salitre.
– Vamos mesmo assim. A constipação não é nada. Amontillado! Eu é que vou abusar da sua hospitalidade. E quanto ao Luchresi, ele não sabe distinguir sherry de amontillado.
Assim dizendo, Fortunato agarrouse ao meu braço, colocou uma máscara de seda preta e, enrolandose na roquelaure[3], encostouse a mim e fezme correr para chegar ao meu palazzo.
Não estava nenhum criado em casa; tinhamse volatilizado para se irem divertir com as festas. Tinhalhes dito que não voltaria antes da manhã e dera ordens explícitas para não se mexerem de casa. Estas ordens eram o suficiente, como eu bem sabia, para garantir o imediato desaparecimento de todos eles, assim que eu voltasse as costas.
Apanhei duas tochas e, dando uma a Fortunato, leveio através de várias salas até à passagem arqueada que descia para a adega. Desci pela longa escada de caracol, pedindolhe, enquanto me seguia, que tivesse cuidado. Finalmente atingimos o fim da descida e chegámos à húmida profundidade das catacumbas dos Montresor.
O caminhar do meu amigo não era muito firme, e os sinos do boné tocavam enquanto ele ia andando.
– A pipa – disseme ele.
– É mais adiante – disselhe –, mas repare na teia branca que brilha nas paredes desta cave.
– Salitre? – perguntoume ele depois de um silêncio.
– Salitre – respondilhe.
– Há quanto tempo é que está com essa tosse?
– Ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh!
ugh! ugh! ugh! ugh! ugh!
Durante alguns minutos o meu pobre amigo não conseguia responderme.
– Não é nada – disse finalmente.
– Vamos – disse eu, com decisão –, voltaremos para trás; a sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; e feliz, como eu uma vez também fui. É um homem que será lembrado com saudade. Para mim não tem importância. Voltaremos para trás; vai ficar doente e não quero ser responsável. Além disso, há o Luchresi…
– Chega – disse ele –, a tosse não é nada; não me vai matar. Não vou morrer de tosse.
– Verdade, verdade – respondilhe e, de facto, não tinha intenção de o alarmar desnecessariamente –, mas deve ter todo o cuidado. Uma golada deste médoc vai protegernos da humidade.
Ali mesmo parti o gargalo de uma garrafa, tirada da longa fila onde descansava com as suas companheiras, no meio do bolor.
– Beba – disse, apresentandolhe o vinho.
Levouo aos lábios, olhandome de soslaio. Parou e inclinou a cabeça para mim, com familiaridade, fazendo as campainhas tocar.
– Bebo – disse – aos defuntos que repousam à nossa volta.
– E eu à sua longa vida.
Agarrouse outra vez ao meu braço e continuámos.
– Esta adega é vasta – disse ele.
– Os Montresor – respondilhe – eram uma família importante e numerosa.
– Não me lembro do seu brasão.
– Um enorme pé dourado em campo azul; o pé esmaga uma serpente rampante cujas presas estão embebidas no calcanhar.
– E a divisa?
Nemo me impune lacessit[4].
– Óptimo – disse ele.
O vinho brilhavalhe nos olhos e os sinos tocavam. A minha disposição aquecia com o médoc. Tínhamos passado por longas paredes com esqueletos empilhados, misturados com pipas e tonéis, até chegarmos aos mais profundos recessos das catacumbas. Parei novamente, e desta vez agarrei Fortunato com força pelo braço, acima do ombro.
– O salitre! – disselhe –, veja como aumenta. Fica pendurado como musgo a cair dos arcos. Estamos debaixo do leito do rio. As gotas de humidade pingam em cima dos ossos. Venha, vamos voltar antes que seja tarde de mais. A sua tosse…
– Não é nada – disse ele –, vamos continuar. Mas primeiro
outra golada do médoc.
Parti uma garrafa de De Grave e deilha. Esvazioua de um fôlego. Os seus olhos brilhavam com uma luz viva. Riuse e atirou a garrafa para cima, com uma gesticulação que não percebi.
Olheio, surpreendido. Repetiu o gesto, que era grotesco.
– Não está a perceber? – perguntoume.
– Eu não – respondi.
– Então não pertence à irmandade.
– Como?
– Não é um mação.
– Sim, sim – afirmei –, sim, sim.
– Você? Um mação? Impossível!
– Um mação – respondilhe.
– Um sinal – pediume–, um sinal.
– Aqui está – respondi, tirando uma colher de pedreiro[5] de entre as dobras da minha roquelaure.
– Está a brincar – exclamou, recuando alguns passos –, mas vamos continuar até ao amontillado.
– Assim seja – disse, colocando a ferramenta sob a capa e oferecendolhe novamente o meu braço. Apoiouse pesadamente
nele. Continuámos o nosso caminho, à procura do amontillado. Passámos por uma série de arcos baixos, descemos, continuámos e, descendo novamente, chegámos a uma cripta profunda, na qual a má qualidade do ar fazia com que as tochas brilhassem sem chama.
No mais remoto extremo da cripta viase uma outra, menos espaçosa. As suas paredes estavam forradas com restos humanos, empilhados até ao arco acima, no género das grandes catacumbas de Paris. Três paredes desta cripta interior ainda assim estavam ornamentadas. No quarto lado os ossos tinham sido arrancados e jaziam promiscuamente na terra, formando um monte de bom tamanho. No meio da parede assim exposta pela retirada dos ossos demos com uma cripta ou recesso ainda mais interior, com uns quatro pés de largura, três de fundo e seis ou sete de altura[6]. Não parecia ter sido aberta para algum fim em especial, mas apenas ser um espaço formado entre duas das colossais colunas que suportavam o tecto das catacumbas, e o fundo era uma das paredes exteriores, de granito maciço.
Foi em vão que Fortunato, levantando a sua fraca tocha, tentou espreitar para o interior do recesso. A luz quase apagada não nos deixava ver o fundo.
– Prossiga – disselhe –, aí dentro é que está o amontillado. Quanto a Luchresi…
– Ele é um ignorante – interrompeu o meu amigo, ao mesmo tempo que dava cambaleantes passos, comigo nos seus calcanhares. Imediatamente chegou ao fundo do nicho e, vendo que não podia avançar mais por causa da parede, ficou estupidamente surpreendido. No instante seguinte eu tinhao
prendido à parede. Na sua superfície havia duas argolas de ferro, a dois pés[7] de distância uma da outra, na horizontal. De uma delas pendia uma corrente curta, e a outra tinha um cadeado. Passada a corrente pela cintura dele, era apenas uma questão de segundos prendêla do outro lado. Ele estava demasiado estarrecido para poder resistir. Retirei a chave e recuei para fora do recesso.
– Passe a sua mão pela parede – disselhe –, não pode deixar de sentir o nitrato. Com efeito, está muito húmido. Uma vez mais deixeme implorarlhe que voltemos. Não? Então devo deixálo, definitivamente. Mas primeiro devo oferecerlhe todos os pequenos confortos que me forem possíveis.
– O amontillado – cuspia o meu amigo, ainda não completamente recuperado da sua surpresa.
– É verdade – respondilhe –, o amontillado.
Enquanto dizia estas palavras ocupavame com a pilha de ossos de que já falei. Afastandoa, logo encontrei uma certa quantidade de pedra e argamassa. Com esses materiais e a ajuda da minha colher de pedreiro, comecei com todo o vigor a construir uma parede na entrada do nicho.
Tinha apenas terminado a primeira fileira de pedras, quando percebi que a bebedeira de Fortunato se evaporou quase toda. A primeira indicação que recebi foi um gemido choroso muito fraco que vinha do fundo do recesso. Não era choro de bêbado. Seguiuse um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda fileira, e a terceira, e a quarta, e então ouvi furiosas sacudidelas na corrente. O ruído arrastouse por vários minutos, durante os quais parei o meu trabalho e me sentei na pilha de ossos, para poder prestarlhe atenção, com mais prazer. Quando o último tinido deixou de se ouvir voltei ao meu trabalho com a colher e terminei sem interrupção a quinta, sexta e sétima fileiras. A parede estava agora quase à altura do meu peito. Parei novamente e, segurando a tocha sobre a parede, lancei alguns ténues raios de luz sobre a figura lá dentro.
Uma sucessão de gritos altos e agudos, saídos subitamente
da figura agrilhoada, quase que me fizeram recuar. Por um breve instante hesitei, estremeci. Desembainhando a minha espada, comecei a tentear dentro da abertura, mas depressa me acalmei. Coloquei a minha mão na solidez da catacumba e sentime tranquilo. Aproximeime da parede e respondi aos gritos daquele que clamava. Ecoeios, prolongueios e até os ultrapassei em altura e força. Quando fiz isto, o gritador calouse.
Já era meianoite, e a minha tarefa estava a terminar. Tinha acabado a oitava, nona e décima fileiras. Tinha feito uma parte da décima primeira e última; faltava apenas colocar e cimentar uma única pedra. Lutei com o seu peso; coloqueia parcialmente na posição pretendida. Mas então veio do nicho uma risada fraca que me arrepiou os cabelos. Seguiuselhe uma voz triste, que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. A voz disse:
– Ah! ah! ah! eh! eh! eh! Uma boa piada, realmente… Uma excelente piada. Ainda nos vamos rir muito sobre isto lá no palazzo… eh! eh! eh! a beber o nosso vinho… eh! eh! eh!
– O amontillado – disse eu.
– Eh! eh! eh! eh! eh! eh! sim, o amontillado. Mas não está a ficar tarde? Não estarão eles à nossa espera no palazzo, a Senhora Fortunato e os outros? É melhor irmos.
– Sim – disselhe –, é melhor irmos.
– Por amor de Deus! Montresor!
– Sim – repeti –, por amor de Deus!
Esperei em vão uma resposta às minhas palavras. Comecei
a ficar impaciente. Chamei por ele:
– Fortunato!
Nenhuma resposta. Chamei outra vez:
– Fortunato!
Ainda nenhuma resposta. Atirei uma tocha pela abertura que restava e deixeia cair lá dentro. Como resposta chegoume apenas o tilintar dos sinos. Apresseime a terminar o meu trabalho. Coloquei a última pedra na devida posição e cimenteia.
Sobre a nova parede reconstruí a velha camada de ossos. Durante este meio século ninguém os perturbou. In pace requiescat[8]!




[1] No original millionaires, em francês. (N. do T.)
[2] Na época, o Império AustroHungaro
rivalizava com a Inglaterra como maior
potência europeia. (N. do T.)

[3] Capa até aos joelhos usada no século xviii. O nome vem de um duque francês. Em francês no original. (N. do T.)
[4] Ninguém me fere impunemente. (N. do T.)
[5] Trocadilho em inglês; pedreiro e mação são a mesma palavra, mason. (N. do T.)

[6] 120 × 90 × 180 / 210 cm.
[7] 60 cm.
[8] Descansa em paz. (N. do T.)

TRADUÇÃO: José Couto Nogueira

2 comentários:

  1. Está um blog muito giro:D

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  2. Este blog é giro
    Aquilo da escrira criativa meto nos comentários

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