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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Projecto de Escrita Criativa

--Final alternativo ao conto A Pipa de Amontillado--


1º passo: Ter em conta os seguintes aspectos do conto

Antes de construir o final do conto, reflecti sobre:                                                                     

°         Os acontecimentos a narrar   e como de desenrolaram                                                        
°         As personagens que intervieram                                                                     
°         O tempo em que decorreu a acção                                                                                  
°         O espaço onde se desenrolou a acção                                                                     
°         A intervenção do narrador                                                                                                             
Ao elaborar o meu texto, preocupei-me em estruturá-la da seguinte forma:

°         Criar uma situação inicial         
°         Desenvolver a história, traçando o percurso das personagens e
apresentando:
-- projectos e desejos                                                                                                          
-- obstáculos surgidos                                                                          
-- auxílios prestados                                                                                  
-- sucessos ou insucessos                                                                                 
°         Conceber um desenlace para a minha narrativa                                                                                                            

Ao redigir a narrativa:

°         Respeitei, no relato das peripécias, a ordem que escolhi                                
°         Utilizei as palavras ou expressões adequadas para articular
parágrafos e frases                                                                                                                     
°         Quando introduzi o discurso directo, respeitei as principais regras:
-- uso do travessão                                                                                       
-- escolha de verbos de elocução (falar, perguntar,
responder, afirmar, implorar, replicar, etc.)                                                             
°         Prestei atenção à concordância entre modos e tempos verbais                
°         Procurei utilizar:
-- um vocabulário sugestivo e variado                                                    
-- recursos de estilo                 

2º Passo: Rascunho e planificação do texto

Leituras: "Berenice"

   A desgraça neste mundo é variada; uniforme é a miséria. Dominando o vasto horizonte como o arco-íris, como ele as suas cores são diversas, distintas e todavia intimamente fundidas.
   Dominando o vasto horizonte como o arco-íris! Como pude de um exemplo de beleza tirar um tipo de feiúra? De um emblema de paz e aliança tirar uma semelhante dor? É que, assim como na ética o mal é a consequência do bem, na realidade, é da alegria que nasce o desgosto: se a lembrança da felicidade passada produz as amarguras de agora, as amarguras que existem têm a sua origem nos prazeres que podiam ter existido.
   A história que vou contar é, por essência, uma história de horror. De boa vontade suprimiria, se não fosse mais uma crónica de sensação do que uma crónica dos factos.
   O meu nome é Egeu; do nome da minha família guardarei segredo. Não há em todo o país um castelo mais carregado de anos e de glória do que o velho e melancólico solar dos meus avós. Deste tempo imemorável, chamavam a nossa família de raça de visionários. De facto, em muitos pormenores notáveis, no tipo do nosso castelo, nas pinturas do enorme salão, nas tapeçarias dos aposentos, nas cinzeladuras das colunas da sala de armas; porém, mais especialmente, na galeria dos quadros antigos, na decoração da biblioteca, e, também, na natureza muito particular do conteúdo dessa biblioteca, há de sobra por que justificar aquela denominação.
   A recordação dos meus primeiros anos está intimamente ligada àquela sala e aos seus livros, dos quais não mais falaria. Foi lá que morreu minha mãe. Foi ali que eu nasci (se é que não vivia antes; se é que a alma não tem existência anterior). Mas não discutamos agora este assunto. Estou convencido, não procuro convencer. Na minha memória, há uma reminecência de formas etéreas, de olhos intelectuais e expressivos, de vozes harmoniosas e melancólicas; uma reminescência que não quer me deixar; uma espécie de lembrança como uma sombra vaga, variável, vacilante. Sombra essencial, da qual não poderei separar-me enquanto o meu cérebro fulgir a luz da razão.
   Foi naquele quarto que eu nasci. Emergindo assim das longas trevas, que pareciam ser, mas que não eram, o nada, para cair subitamente num país maravilhoso, num palácio fantástico, nos estranhos domínios dos pensamentos e da erudição monástica, não é para admirar que tenha lançado, em torno de mim, um olhar surpreso e ardente que consumiu a minha infância lendo livros e a minha juventde em devaneios. Mas o que é peculiar, (passados os anos e no auge da vida, ainda me encontrar na mansão dos meus antepassados) o que é estranho, é a inércia que me paralisou os órgãos essenciais da vida; é a inversão total que ocorreu nas características dos meus pensamentos mais simples. As realidades do mundo não me impressionavam senão com visões, enquanto as ideias loucas do país dos sonhos eram, não uma preocupação com a minha vida, mas seguramente a única razão da minha existência.
   Berenice e eu eramos primos e crescemos juntos na casa da família. Mas crescemos diversamete. Eu, doentio e envolvido na minha melancolia; ela ágil, graciosa e exuberantemente activa. Para ela, os passeios pela colina, para mim, os estudos do claustro. Eu, encerrado em mim mesmo, dedicando-me de corpo e alma à mais intensa, à mais penosa meditação; ela, divagando descuidada através da visda, sem pensar nas sombras do caminho, nem na corrida silenciosa das horas. Berenice! Berenice! Quando invoco o seu nome, mil lembranças tumultuosas ressurgem sombrias da minha memória! Ah! Vejo-a ainda risonha, diante de mim, como nos seus dias de felicidade e alegria! Oh! Magnífica e fantástica beleza! Oh! Sílfide dos bosques de Arnhein! Oh! Náiade das fontes! E depois... e depois de tudo é mistério, terror! uma história que não quer ser contada.
   Um mal, um mal funesto soprou forte, como o vento africano, sobre a sua compleição; de um momento para outro passou sobre ela o espírito da metamorfose e arrebatou-a, penetrando-lhe o espírito dos hábitos, o carácterr e, do modo mais súbtil e terrível, perturbando-a, metamorfoseando-a radicalmente! Ai o destruidor vinha e voltava, mas a vítima, a verdadeira Berenice, que era feito dela? Aquela não era a mesma; pelo menos eu não a reconhecia mais por Berenice.
   Entre a numerosa série de males, carreados pelo ataque principal, que fizera uma transformação tão horrorosa no ser físico e moral de minha rpima, é preciso mencionar, como o mais aflitivo e o mais teimoso, uma espécie de epilepsia que muitas vezes terminava em catalepsia perfeitamente semelhante à morte, da qual ela despertava quase sempre de modo brusco, repentino.
   Ao mesmo tempo, a minha doença também aumentava rapidamente e, agravando-se os sintomas peo uso imderado de ópio, tomou finalmente o carácter de uma monomania totalmente nova e extraordinária. De uma hora para a outra, de um minuto para o outro, ganhava forças até que chegou a adquirir sobre mim um domínio singular e desconhecido. Aquela monomania (se devo servir-me deste termo) consistia numa irritabilidade mórbida das faculddaes do espíritos que a linguagem filosófica denomina: faculdades de atenção. É muito provável que não me compreendam; e temo realmente que me seja absolutamente impossível dar ao comum dos leitores a ideia exacta da nervosa "intensidade de interesse" com a qual a minha faculdade meditativa (para evitar a linguagem técnica) se aplicava e se absorvia na contemplação dos objectos mais comuns do mundo.
   Meditar infatigavelmente horas e horas perdidas sobre qualquer citação pueril escrita à margem ou texto de um livro; ficar absorto, a maior parte do dia, na contemplação de uma sombra estranha, projectando-se obliquamente ao longo do soalho ou da tapeçaria; esquecer-me uma noite inteira a observar a luz da lâmpada ou as brasas do fogão; sonhar dias inteiros com o perfume de uma flor; repetir, sem variação, alguma palavra vulgar, até que, à força de repetida, deixar-se de representar ao espírito a menor ideia; perder inteiramente o sentimento do movimento ou da existência física, para cair numa aquietação absoluta, obstinadamente prolongada, tais eram as mais comuns e as menos perniciosas aberrações das minhas faculdades mentais: abrrações encontradas em casos similares mas que não têm, por certo, explicação ou estudo.
   Para ser bem claro, devo dizer ainda que aquela atenção intensa e mórbida, assim excitada pelos objectos mais comuns, era de natureza basicamente diversa da tendência que a humanidade tem pela meditação e à qual se entegram, principalmente, a divagações ardentes. Também não era, como poderia parecer à primeira vista, um excesso ou exagero dessa tendência, mas era radicalmente diferente dela, até pela sua natureza. No primeiro caso, o pensador, o homem imaginativo, interessando-se por um objecto (geralmente não banal) perde-o de vista, pouco a pouco, através da variedade de dedução e sugestões que lhe inspira, a ponto de, quando chega ao fim de um desses sonhos, por vezes com grande prazer, ter se afastado e esquecido o "incitamentum" ou causa primária das suas reflexões. No meu caso, o ponto de partida era "invariavelmente frívolo", uma vez que revestido pela minha imaginação doentia como de suma importância. Fazia poucas ou nenhumas reflexões e, quando as fazia, voltavam obstinadamente ao objecto central. As meditações eram agradáveis e, no fim do sonho, a causa primária, longe de estar esquecida, atingia um interesse sobrenatural, que era a feição dominante do meu mal. Numa palavra, a faculdade de espírito mais particularmente excitada em mim era, como já disse, a faculdade de atenção, enquanto no pensador normal a faculdade mais desenvolvida é a da meditação.
   Os meus livros, naquela época, se não contribuíam positivamente para activar o mal, participavam fortemente, pela sua natureza imaginativa e irracional, das qualidades características da própria doença. Lembro-me, entre outros, do tratado do nobre, Coelius Secundos Curio, "De amplitudine Beati de Dei"; da grande obra de Santo Agostinho, "A Cidade de Deus" e do "Carne Christi" de Tertuliano, cujo estranho pensamento: " Mortuus est Dei Filius; credibili est quia ineptum est; et spultus resurrexit; certum est quia impossibile est", absorveu totalmente toda a minha existência, durante muitas semanas de laboriosas e infrutíferas investigações.
   A minha razão, assim desiquilibrada por coisas insignificantes, fazia lembrar aquela rocha marítima de que fala Ptolomeu Hephestion, a qual resistia imutável a todos os ataques dos homen, e até ao furor dos ventos e das tempestades, mas que tremia só ao contacto da flor chamada asfódelo. Ao pensador desatento, parecerá evidente que a alteração terrível produzida no estado moral de Berenice, pela sua doença deplorável, devesse me fornecer um grande assunto para exercer a meditação anormal, cuja natureza acabo de explicar. Pois bem! Não aconteceu assim. Nos intervalos lúcidos da minha enfermidade, a desgraça de Berenice realmente  me causava dor. Enternecia-me profundamente a ruína total da sua vida alegre e doce. Meditava muitas vezes e com amargura sobre as causas terríveis e misteriosas que tinham produzido tão estranha e repentina transformação. Mas essas reflexões análogas ao homem comum não funcionavam com a idiossincrasia do meu mal. Durante os acessos, a minha monomania, fiel ao seu carácter frívolo, preocupava-se apenas com as alterações menos importantes, se bem que mais evidentes, que se manifestavam no sistema físico de Berenice; na incomum alteração da sua identidade.
   Nuna havia amado minha prima nos seus dias de fulgurante e incomparável beleza; mesmo porque, na estranha anomalia da minha existência, os sentimentos me vinham mais do espírito que do coração. Muitas vezes, através das nuvens do crepúsculo e ao meio-dia, pelas sombras da floresta, ou de noite na minha biblioteca, vendo-a passar diante de mim, contemplava-a, não como a Berenice viva e palpável, mas como a Berenice de um sonho, não como um ser terrestre, carnal, mas uma abstração da realidade; não como uma criatura para admirar, mas uma coisa para se analisar; não como um objecto de amor, mas como tema de meditação, indefinida e irregular. Mas agora, tremia na sua presença, empalidecia à sua aproximação. Contudo, lamentando amrgamente a sua lamentável decadência, lembrei de que me amara durante um tempo e uma vez que  lhe falei de casamento.
   Aproximava-se a época do nosso noivado quando numa tarde de inverno, calma, enevoada, inesperadamente quente, sentei-me, na biblioteca. Pensei estar só, mas erguendo os olhos vi Berenice, em pé, diante de mim.
   Ou a minha imaginação exaltada ou a inflência nevoenta da atmosfera, ou o crepúsculo incerto no cômodo, ou o vestido negro que trajava, lhe emprestou aquela imagem trêmula e insegura? Não sei dizer. Ela ñão proferiu uma palavra e eu, naquele instante, não teria podido pronunciar uma sílaba sequer. Pelo meu corpo correu um tremor gélido. Senti-me oprimido por uma sensação de agonia incontrolável e a minha alma foi subitamente invadida por uma crescente curiosidade. Mas permaneci imóvel, recostado na poltrona, sem fala e respiração, com os olhos nela. Ai! A sua magreza era espectral! Nem um vestígio do ser primitivo, nem um só dos seus contornos havia sobrevivido! Meu olhar ardente fixava-se no seu rosto.      
   Tinha a fronte erguida, muito pálida e estranhamente plácida. Os cabelos, outrora negros, caíam-lhe sobre as fontes encovadas, em anéis de um loiro forte, caracterizando uma imagem que discordava cruelmente com a tristeza dominante da sua fisionomia. Os olhos sem vida, nem brilho, pareciam não ter pupilas. Desviei involutariamente a vista do seu olhar envidraçado e observei os seus lábios finos e tesos. Estes entreabiram-se num sorriso estranho e os dentes da nova Berenice surgiram lentamente à minha vista. Quisera Deus que nunca os houvesse visto, ou que, ao vê-los, tivesse morrido!
   De repente ouvi o som da porta fechar-se e levantei os olhos para ver que a minha prima deixara o aposento. Mas o espectro horrível dos seus dentes brancos tinham ficado no meu cérebro desordenado e não queria sair. Não havia uma depressão na superfície, uma pequena diferença no esmalte, um bico nas suas arestas, que aquele sorriso passageiro não me tivesse deixado forte impressão na memória.
   Via-os agora ainda mais distintamente que os vira antes. Os dentes! Os dentes! Estavam ali, acolá, por toda a parte, visíveis diante de mim; comprimidos, estreitos e excessivamente brancos, circundados pelos lábios pálidos e horrivelmente esticados.
   Então, chegou a fúria da monomania. Em vão lutei contra a sua influência estranha e irresistível. No número infinito dos objectos do mundo exterior, só os dentes me preocupavam. Desejava-os freneticamente! Todos os outros assuntos, todos os interesses diversos foram suplantados por aquela única visão. Eles, só eles estavam presentes aos olhos do meu espírito e a sua individualidade exclusiva tornou-se a essência da minha vida intelectual. Via-os todas as horas e a todos os instantes. Estudava-lhes as características. Observava-lhes os sinais particulares. Meditava sobre a sua conformação. Reflectia na alteração da sua natureza. Estremecia, atribuindo-lhes na imaginação uma faculdade de sentimento, de sensação e uma capacidade de expressão, mesmo sem o auxílio dos lábios. Dizia-se, com razão, de "mademoiselle" de Sallé, que todos os seus passos eram sentimentos. De Berenice acreditava eu intimamente que todos os dentes eram ideias. Ideias! Ah! Eis o pensamento absurdo, que me perdeu, Ideias ah! Aí está a razão pela qual eu os invejava tão loucamente! Sentia que só a posse me podia restituir a paz e a razão.
   E assim a noite desceu sobre mim! Vieram as trevas, instalaram-se e tornaram a fugir! E m dia novo apareceu! E em redor de mim amontoaram-se as sombras de uma segunda noite. E eu, sempre imóvel naquele quarto solitário, sempre sentado, sempre envolvido na minha meditação! E o fantasma dos dentes mantinha sempre a sua terrível influência a ponto de flutuar continuamente, aqui e lá, com a maies espantosa nitidez, ora através da luz, ora através das trevas do aposento.  Enfim, no meio dos seus sonhos, retumbou espantoso grito de horror, ao qual sucedeu, depois de um breve silêncio, o ruído de vozes desoladas, entrecortadas de gemidos surdos, de suspiros, de choro e de dor. Levantei-me e, abrindo uma das portas da biblioteca, encontrei na atecâmara uma criada, e lágrimas, que me disse que Berenice deixara de existir! De manhã fora atacada de epilepsia. E agora, ao cair da tarde, o túmulo esperava a sua próxima morada: todos os preparativos do enterro estavam terminados!
   Aflito e gelado de terror, dirigi-me com repugnância para o quarto da morta. O quarto era grande e muito escuro. Os meus pés esbarravam a cada passo com os preparados do sepultamento. Sob as cortinas do leito (disse-me um criado) estava o caixão e naquele caixão ( acrescentou em voz baixa) jaziam os restos de Berenice.
   Quem me perguntou se não queria ver o corpo? Não vi que nenhum dos lábios se movessem, contudo a pergunta havia sido feita. O eco das últimas sílabas ressoava ainda pelo aposento. Era impossível recusar. Com um sentimento de terrível pressão caminhei para o leito. Levantei lentamente os cortinados e deixei-os cair por trás de mim, ficando por dentro deles, separado do mundo dos vivos, na maior intimidade com a morta!
Toda a atmosfera do quarto exalava a morte e o ar em torno do caixão sufocava-me; era como se o cheiro deletério já saía do cadáver. Naquele momento teria dado qualquer coisa para fugir daquela influência depressiva da mortalidade, para respirar, ainda uma vez o ar puro do céu infinito. Mas os meus movimentos estavam paralisados, vacilavam os joelhos, os meus pés enraizados no solo e os olhos não queriam despregar-se daquele corpo rígido, estendido ao comprido no caixão ainda aberto.
   Justo céu! É impossível! Foi a alucinação do meu cérebro ou moveu-se mesmo o dedo da defunta dentro do tule que a envolvia? Trêmulo de inesplicável terror, voltei o olhar para a fisionomia do cadáver. O lenço, que lhe segurava o queixo, desatara-se, não sei como. Os lábios lívidos torciam-se numa espácie de sorriso, e naquela moldura lúgubre, os dentes de Berenice, brancos, luzidíos, terríveis, pareciam olha-me como se fosse algo vivo! Desviei-me do leito compulsivamente e, sem pronunciar uma palavra, saí correndo como um maníaco, daquele quarto carregado de mistérios, horror e morte!
   Achei-me sentado outra vez só na biblioteca. Era meia-noite. Parecia-me ter saído de um sonho confuso e agitado. Sabia que Berenice fora enterrada depois do pôr-do-sol, mas não guardava nenhuma lembrança clara ou a visão definida do que havia passado naquele intervalo lúgubre. No entanto a minha memória revolvia-se de um terror dúbio e vago e por isso mais perturbador. Era como uma página horrorosa do registro da minha existência, escrita em caracteres estranhos, medonhos e ininteligíveis, que em vão me esforçava por decifrar. De vez em quando, semelhante ao eco de um som abafado, vibrava-me nos ouvidos um grito fraco e agudo, uma voz de mulher. Que tinha eu feito? perguntava a mim mesmo em voz alta. E os ecos do aposento respondiam murmurando: " Que tinha eu feito?"
E cima da mesa, ao meu lado, havia um abajour e junto dele uma caixinha de ébano. Aquela caixa não representava nada de especial, já a tinha visto muitas vezes porque pertencia ao médico da família. Mas como tinha ela vindo parar ali, em cima da minha mesa? E porque tremi eu ao contemplá-la? Realmente, não valia a pena pensar nisso. Entetanto, os meus olhos, encontrando as páginas de um livro aberto, fixaram-se numa frase sublinhada. Eram as palavras singulares, mas muito simples, do poeta Ebn Zaiat, sobre chefe militar que, ao morrer, autoriza os soldados a saquearam o próprio túmulo.- Porquê, ao lê-las, arrepiavam-se os meus cabelos? Porque me gelou a sangue nas veias?
De repente, bateram de manso à porta da biblioteca e um criado, pálido como um habitante do túmulo, entrou na ponta dos pés. Tinha os olhos esgazeados de terror e a sua voz trêmula e abafada falou-me em tom quase imperceptível. Que me disse?- Não ouvi, senão algumas frases truncadas. Creio que me contou sobre um grito horroroso que perturbou o silêncio da noite e que todos os criados tinham corrido na direcção do som. Então a sua voz baixa tornou-se exageradamente clara, ao falar da violação de uma espultura, de um corpo desfigurado, despojado da mortalha, mas respirando ainda, palpitando ainda, "ainda vivo"!
   Então olhou para a minha roupa e ela estava manchada de sangue! Sem dizer uma palavra, pegou-me na mão e ela tinha as marcas de unhadas humanas! Depois apontou para o objecto que se encontrava encostado na parede; era uma enxada!
   Soltando um grito medonho, precipitei-me sobre a mesa e agarrei a caixa de ébano; mas as minhas mãos trêmulas não tiveram força para segurá-la. A caixa caiu no chão, espalhando, com um tinir de ferragens, alguns instrumentos de cirurgia dentária e, ao mesmo tempo, trinta e duas coisinhas, brancas como marfim, se dispersaram por aqui e acolá, no solo do aposento... 

at http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/apoe_berenice.shtml

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Leituras: "O Gato Preto"

Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tão extraordinária
e no entanto tão familiar história que vou contar. Louco seria
esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos
se recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com toda
a certeza que não estou a sonhar. Mas porque posso morrer
amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito. O meu fim imediato é
mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem comentários,
uma série de meros acontecimentos domésticos. Nas suas
consequências,estes acontecimentos aterrorizaram-me,
torturaram-me, destruíram-me. No entanto, não procurarei
esclarecê-los. O sentimento que em mim despertaram foi quase
exclusivamente o de terror; a muitos outros parecerão menos
terríveis do que extravagantes.
Mais tarde, será possível que se encontre uma inteligência
qualquer que reduza a minha fantasia a uma banalidade. Qualquer
inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do
que a minha encontrará tão somente nas circunstâncias
que relato com terror uma sequência bastante normal de causas
e efeitos. Já na minha infância era notado pela docilidade e
humanidade do meu carácter. Tão nobre era a ternura do meu
coração, que eu acabava por tornar-me num joguete dos meus
companheiros. Tinha uma especial afeição pelos animais e os
meus pais permitiam-me possuir uma grande variedade deles.
Com eles passava a maior parte do meu tempo e nunca me sentia
tão feliz como quando lhes dava de comer e os acariciava. Esta
faceta do meu carácter acentuou-se com os anos, e, quando
homem, aí achava uma das minhas principais fontes
de prazer. Quanto àqueles que já tiveram uma afeição por um cão fiel
e sagaz, escusado será preocupar-me com explicar lhes
a natureza ou a intensidade da compensação que daí se pode tirar. No
amor desinteressado de um animal, no sacrifício de si mesmo, alguma
coisa há que vai direito ao coração de quem tão frequentemente pôde
comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade do homem.
Casei jovem e tive a felicidade de achar na minha mulher uma
disposição de espírito que não era contrária à minha. Vendo o meu
gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade de me
proporcionar alguns exemplares das espécies mais agradáveis.
Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão, coelhos, um
macaquinho, e um gato. Este último era um animal notavelmente
forte e belo, completamente preto e excepcionalmente esperto.
Quando falávamos da sua inteligência, a minha mulher, que não
era de todo impermeável à superstição, fazia frequentes
alusões à crença popular que considera todos os gatos pretos como
feiticeiras disfarçadas. Não quero dizer que falasse deste assunto
sempre a sério, e se me refiro agora a isto não é por qualquer motivo
especial, mas apenas porque me veio à idéia.
Plutão, assim se chamava o gato, era o meu amigo predilecto e
companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e seguia-me
por toda a parte, dentro de casa. Era até com dificuldade que
conseguia impedir que me seguisse na rua.
A nossa amizade durou assim vários anos, durante os quais o meu
temperamento e o meu carácter sofreram uma alteração radical -
envergonho-me de o confessar - para pior, devido ao demónio da
intemperança. De dia para dia me tornava mais taciturno, mais
irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Permitia-me
usar de uma linguagem brutal com minha mulher. Com o tempo,
cheguei até a usar de violência. Evidentemente que os meus pobres
animaizinhos sentiram a transformação do meu carácter. Não só os
desprezava como os tratava mal.
Por Plutão, porém, ainda nutria uma certa consideração que me
não deixava maltratá-lo. Quanto aos outros, não tinha escrúpulos em
maltratar os coelhos, o macaco e até o cão, quando por acaso ou por
afeição se atravessavam no meu caminho.
Mas a doença tomava conta de mim - pois que doença se assemelha
à do álcool? - e, por fim, até o próprio Plutão, que estava a ficar
velho e, por consequência, um tanto impertinente, até o próprio
Plutão começou a sentir os efeitos do meu carácter perverso.
Certa noite, ao regressar a casa, completamente embriagado, de
volta de um dos tugúrios da cidade, pareceu-me que o gato evitava
a minha presença. Apanhei-o, e ele, horrorizado com a violência do
meu gesto, feriu-me ligeiramente na mão com os dentes. Uma fúria
dos demónios imediatamente se apossou de mim. Não me reconhecia.
Dir-se-ia que a minha alma original se evolara do meu corpo num
instante e uma ruindade mais do que demoníaca, saturada de
genebra, fazia estremecer cada uma das fibras do meu corpo. Tirei
do bolso do colete um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pelo
pescoço e, deliberadamente, arranquei-lhe um olho da órbita!
Queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta
abominável atrocidade.Quando, com a manhã, me voltou a razão,
quando se dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia,
experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo
crime que tinha cometido. Mas era um sentimento frágil e
equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar
nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do
acto. Entretanto, o gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia
apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal não
aparentava qualquer sofrimento. Vagueava pela casa como de
costume, mas, como seria de esperar, fugia aterrorizado quando eu
me aproximava. Porém, restava-me ainda o suficiente do meu
velho coração para me sentir agravado por esta evidente antipatia
da parte de um animal que outrora tanto gostara de mim.
Em breve este sentimento deu lugar à irritação. E para minha queda
final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE fez de seguida a
sua aparição. Deste espírito não cura a filosofia. No entanto, não
estou mais certo da existência da minha alma do que do facto que
a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano;
uma dessas indivisas faculdades primárias, ou sentimentos, que
deu uma direcção ao carácter do homem.
Quem se não surpreendeu já uma centena de vezes cometendo
uma acção néscia ou vil, pela única razão de saber que a não
devia cometer? Não temos nós uma inclinação perpétua, pese ao
melhor do nosso juízo, para violar aquilo que constitui a Lei,
porque sabemos que o é? E digo que este espírito de perversidade
surgiu para minha perda final. Foi este anseio insondável da alma
por se atormentar, por oferecer violência à sua própria
natureza, por fazer o mal só pelo mal, que me forçou a continuar e,
finalmente, a consumar a maldade que infligi ao inofensivo animal.
Certa manhã, a sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço
e enforquei-o no ramo de uma árvore; enforquei-o com as lágrimas
a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo remorso no coração;
enforquei-o porque sabia que me tinha tido afeição e porque sabia
que não me tinha dado razão para a torpeza; enforquei-o porque
sabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado, um pecado
mortal que comprometia a minha alma imortal a ponto de a colocar,
se tal fosse possível, mesmo para além do alcance da infinita
misericórdia do Deus Mais Piedoso e Mais Severo.
Na noite do próprio dia em que este acto cruel foi perpetrado, fui
acordado do sono aos gritos de «Fogo!». As cortinas da minha cama
estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi com grande
dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar
do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens materiais
foram destruídos, e daí em diante mergulhei no desespero.
Sou superior à fraqueza de procurar estabelecer uma sequência de
causa a efeito entre a atrocidade e o desastre. Limito-me, porém, a
narrar uma cadeia de acontecimentos e não quero deixar nem um elo
sequer incompleto. Nos dias que se sucederam ao incêndio, visitei as
ruínas. As paredes, à excepção de uma, tinham abatido por completo.
Esta excepção era constituída por um tabique interior, não muito
espesso, que estava sensivelmente a meio da casa, e de encontro ao
qual antes ficava a cabeceira da minha cama. O reboco resistira em
grande parte à acção do fogo, facto que atribuo a ter sido pouco
antes restaurado.
Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão e muitas
pessoas pareciam estar a examinar certa zona em particular, com
minúcia e grande atenção. A minha curiosidade foi despertada
pelas palavras «estranho», «singular» e outras expressões
semelhantes. Aproximei-me e vi, como se fora gravado em baixo
revelo, sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco.
A imagem estava desenhada com uma precisão realmente espantosa.
Em volta do pescoço do animal estava uma corda. Mal vi a aparição,
pois nem podia pensar que doutra coisa se tratasse, o meu assombro
e o meu terror foram imensos. Por fim, a reflexão veio em meu auxílio.
Lembrei-me que o gato fora enforcado num jardim junto à casa. Após
o alarme de incêndio, O dito jardim fora imediatamente invadido pela
multidão e por alguém que deve ter cortado a corda do gato e o deve
ter lançado para dentro do meu quarto, por uma janela aberta. Isto
deve ter sido feito, provavelmente, com a intenção de me acordar.
A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima da minha
crueldade na substância do reboco recentemente aplicado e cuja cal,
combinada com as chamas e o amoníaco do cadáver, tinha produzido
a imagem tal como eu a via.
Tendo assim satisfeito prontamente a minha razão - que não
totalmente a minha consciência - sobre o facto extraordinário atrás
descrito, não deixou este, no entanto, de causar profunda impressão
na minha imaginação.
Durante meses não consegui libertar-me do fantasma do gato, e,
durante este período, voltou-me ao espírito uma espécie de
sentimento que parecia remorso, mas que o não era. Cheguei ao
ponto de lamentar a perda do animal e a procurar à minha volta,
nos sórdidos tugúrios que agora frequentava com assiduidade, um
outro animal da mesma espécie e bastante parecido que preenchesse
o seu lugar.
Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num antro mais do que
infamante, a minha atenção foi despertada por um objecto preto que
repousava no topo de um dos enormes toneis de gin ou de rum que
constituíam o principal mobiliário do compartimento. Havia minutos que
olhava para a parte superior do tonel, e o que agora me causava
surpresa era o facto de não me ter apercebido mais cedo do objecto
que estava em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a mão. Era um
gato preto, um gato enorme, tão grande como Plutão e semelhante a
ele em todos os aspectos menos num. Plutão não tinha sequer um
único pêlo branco no corpo, enquanto este gato tinha uma mancha
branca, grande mas indefinida, que lhe cobria toda a região do peito.
Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e ronronou com
força, roçouse pela minha mão, e parecia contente por o ter notado.
Era este, pois, o animal que eu procurava. Imediatamente propus a
compra ao dono, mas este nada tinha a reclamar pelo animal, nada
sabia a seu respeito, nunca o tinha visto até então.
Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava para ir para casa,
o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Permiti que o
fizesse, inclinando-me de vez em quando para o acariciar enquanto
caminhava.
Quando chegou a casa, adaptou-se logo e logo se tornou muito
amigo da minha mulher. Pela minha parte, não tardou em surgir
em mim uma antipatia por ele. Era exactamente o reverso do que
eu esperava, mas, não sei como nem porquê, a sua evidente
ternura por mim desgostava-me e aborrecia-me. Lentamente, a
pouco e pouco, esses sentimentos de desgosto e de aborrecimento
transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; um certo
sentimento de vergonha e a lembrança do meu anterior acto de
crueldade impediram-me de o maltratar fisicamente. Abstive-me,
durante semanas, de o maltratar ou exercer sobre ele qualquer
violência, mas, gradualmente, muito gradualmente, cheguei a nutrir
por ele um horror indizível e a fugir silenciosamente da sua odiosa
presença como do bafo da peste.
O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal foi descobrir, na
manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, que, tal como
Plutão, tinha também sido privado de um dos seus olhos. Esta
circunstância, contudo, mais afeição despertou na minha mulher,
que, como já disse, possuía em alto grau aquele sentimento de
humanidade que fora em tempos característica minha e a fonte de
muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros.
Com a minha aversão pelo gato parecia crescer nele a sua
preferência por mim. Seguia os meus passos com uma pertinácia
que seria difícil fazer compreender ao leitor. Sempre que me
sentava, enroscava-se debaixo da minha cadeira ou saltava-me
para os joelhos, cobrindo-me com as suas repugnantes carícias.
Se me levantava para caminhar, metia-se-me entre os pés e
quase me fazia cair ou, fincando as suas garras compridas e
aguçadas no meu roupão, trepava-me até ao peito.
Em tais momentos, embora a minha vontade fosse matá-lo com uma
pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do meu
crime anterior mas, principalmente, devo desde já confessá-lo,
por um verdadeiro medo do animal.
Este medo não era exactamente o receio de um mal físico;
no entanto, é me difícil defini-lo de outro modo. Quase me
envergonhava admitir - sim, mesmo aqui, nesta cela de malfeitor,
eu me envergonho de admitir - que o terror e o horror que o animal
me infundia se viam acrescidos de uma das fantasias mais perfeitas
que é possível conceber. Minha mulher tinha-me chamado várias
vezes a atenção para o aspecto da mancha de pêlo branco
de que já falei, e que era a única diferença aparente entre
o estranho animal e aquele que eu tinha eliminado. O leitor
lembrar-se-á que esta marca, embora grande, era, originariamente,
bastante indefinida, mas, gradualmente, por fases quase imperceptíveis
e que durante muito tempo a minha razão lutou por rejeitar como
fantasiosas, assumira, finalmente, uma rigorosa nitidez de contornos.
Era agora a imagem de um objecto que me repugna mencionar, e por
isso eu o odiava e temia acima de tudo, e ter-meia visto livre do
monstro se o ousasse. Era agora a imagem de uma coisa abominável
e sinistra: a imagem da forca!, oh!, lúgubre e terrível máquina
de horror e de crime, de agonia e de morte.
Por essa altura, eu era, na verdade, um miserável maior do que toda a
miséria humana. E um bruto animal cujo semelhante eu destruíra com
desprezo, um bruto animal a comandar-me, a mim, um homem, feito à
imagem do Altíssimo - oh!, desventura insuportável. Ah, nem de
dia nem de noite, nunca, oh!, nunca mais, conheci a bênção do repouso!
Durante o dia o animal não me deixava um só momento. De noite, a
cada hora, quando despertava dos meus sonhos cheios de indefinível
angústia, era para sentir o bafo quente daquela coisa sobre o meu
rosto e o seu peso enorme, incarnação de um pesadelo que eu não
tinha forças para afastar, pesando-me eternamente sobre o coração.
Sob a pressão de tormentos como estes, os fracos resquícios do
bem que havia em mim desapareceram. Só os pensamentos
pecaminosos me eram familiares - os mais sombrios e os mais infames
dos pensamentos. A tristeza do meu temperamento aumentou até se
tornar em ódio a tudo e à humanidade inteira. Entretanto, a minha
dedicada mulher era a vítima mais usual e paciente das súbitas,
frequentes e incontroláveis explosões de fúria a que então me
abandonava cegamente.
Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à cave
do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. O gato
seguiu-me nas escadas íngremes e quase me derrubou, o que me
exasperou até à loucura. Apoderei-me de um machado, e
desvanecendo-se na minha fúria o receio infantil que até então tinha
detido a minha mão, desferi um golpe sobre o animal, que seria fatal
se o tivesse atingido como eu queria. Mas o golpe foi sustido
diabólicamente pela mão da minha mulher. Enraivecido pela sua
intromissão, libertei o braço da sua mão e enterrei-lhe o machado no crânio.
Caiu morta, ali mesmo, sem um queixume.
Consumado este horrível crime, entreguei-me de seguida, com toda a
determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que não o podia
retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem correr o risco de ser
visto pelos vizinhos. Muitos projectos se atropelaram no meu cérebro.
Em dado momento, cheguei a pensar em cortar o corpo em pequenos
pedaços e destruí-los um a um pelo fogo. Noutro, decidi abrir uma
cova no chão da cave. Depois pensei deitá-lo ao poço do jardim, ou
metê-lo numa caixa como qualquer vulgar mercadoria e arranjar um
carregador para o tirar de casa. Por fim, detive-me sobre o que
considerei a melhor solução de todas. Decidi emparedá-lo na cave
como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade Média
às suas vítimas.
A cave parecia convir perfeitamente aos meus intentos. As paredes
não tinham sido feitas com os acabamentos do costume e,
recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa
grossa que a humidade ambiente não deixara endurecer. Além do
mais, numa das paredes havia uma saliência causada por uma
chaminé falsa ou por uma lareira que tinha sido entaipada para se
assemelhar ao resto da cave. Não duvidei que me seria fácil retirar
os tijolos neste ponto, meter lá dentro o cadáver e tornar a pôr a
taipa como antes, de modo que ninguém pudesse lobrigar qualquer
sinal suspeito.
Não me enganei nos meus cálculos. Com o auxílio de um pé-de-cabra
retirei facilmente os tijolos, e depois de colocar cuidadosamente o
corpo de encontro à parede interior, mantive-o naquela posição ao
mesmo tempo que, com um certo trabalho, devolvia a toda a
estrutura o seu aspecto primitivo.
Usando de toda a precaução, procurei argamassa, areia e fibras com
que preparei um reboco que se não distinguia do antigo e, com o
maior cuidado, cobri os tijolos. Quando terminei, vi com satisfação
que tudo estava certo. A parede não denunciava o menor sinal de
ter sido mexida. Com o maior escrúpulo, apanhei do chão os
resíduos. Olhei em volta, triunfante, e disse para comigo: «Aqui,
pelo menos, não foi infrutífero o meu trabalho.» A seguir procurei
o animal que tinha sido a causa de tanta desgraça, pois que,
finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o tivesse encontrado
naquele momento, era fatal o seu destino. Mas parecia que
o astuto animal se alarmara com a violência da minha cólera
anterior e evitou aparecer-me na frente, dado o meu estado de
espírito. É impossível descrever ou imaginar a intensa e aprazível
sensação de alívio que a ausência do detestável animal me trouxe.
Não me apareceu durante toda a noite, e deste modo, pelo menos
por uma noite, desde que o trouxera para casa, dormi bem e
tranquilamente; sim, dormi, mesmo com o crime a pesar-me na
consciência.
Passaram-se o segundo e terceiro dias e o meu verdugo não
aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O monstro,
aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre! Nunca mais
voltaria a vê-lo! Suprema felicidade a minha! A culpa da acção
tenebrosa inquietava-me pouco. Fizeram-se alguns interrogatórios
que colheram respostas satisfatórias. Fez-se inclusivamente uma
busca, mas, naturalmente, nada se descobriu. Dava como certa
a minha felicidade futura. No quarto dia após o crime, surgiu
inesperadamente em minha casa um grupo de agentes da Polícia
que procederam a uma rigorosa busca. Eu, porém, confiado na
impenetrabilidade do esconderijo, não sentia qualquer embaraço.
Os agentes quiseram que os acompanhasse na sua busca. Não
deixaram o mínimo escaninho por investigar. Por fim, pela
terceira ou quarta vez, desceram à cave. Nem um músculo
me tremeu. O meu coração batia calmamente como o
coração de quem vive na inocência. Percorri a cave de
ponta a ponta. De braços cruzados no peito, andava
descontraído de um lado para o outro. Os agentes estavam
completamente satisfeitos e prontos para partir. O júbilo
do meu coração era demasiado intenso para que o pudesse
suster. Ansiava por dizer pelo menos uma palavra à guisa de
triunfo e para tornar duplamente evidente a sua convicção da
minha inocência. - Senhores - disse por fim, quando iam a
subir os degraus. - Estou satisfeito por ter dissipado as vossas
suspeitas. Desejo muita saúde para todos, e um pouco mais de
cortesia. A propósito, esta casa está muito bem construída (e
no meu furioso desejo de dizer qualquer coisa com à-vontade,
mal sabia o que estava a dizer). Direi, até, que é uma casa
excelentemente construída. Estas paredes... vão-se já embora,
meus senhores?... Estas paredes estão solidamente ligadas.
- E neste momento, por uma frenética fanfarronice, bati
com força, com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás
da qual se encontrava o cadáver da minha querida esposa.
Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemónio! Mal tinha
o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma
voz lhes respondeu de dentro do túmulo: um gemido, a princípio
abafado e entrecortado como o choro de urna criança, que
depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo,
extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto
de horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir,
provindo das gargantas conjuntas dos condenados na sua
agonia e dos demónios no gozo da condenação.
Seria insensato falar dos meus pensamentos. Senti-me
desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo terror
e pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se
por instantes. Logo a seguir, doze braços vigorosos atacavam
a parede. Esta caiu de um só golpe. O cadáver, já bastante
decomposto e coberto de pastas de sangue, apareceu
erecto frente aos circunstantes. Sobre a cabeça, com as
vermelhas fauces dilatadas e o olho solitário chispando, estava
o odioso gato cuja astúcia me compelira ao crime e cuja voz
delatora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o monstro
no túmulo!